A tragédia climática deixou o futebol em último plano para os gaúchos

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Com cento e cinquenta mortos e cerca de dois milhões de pessoas afetadas, a vida segue entre os que tentam sobreviver e os que tentam ajudá-los a sobreviver. Quando acontecem tragédias, é comum que o trauma demore a se instalar. Porque é necessário algum tempo (real e emocional) para assimilar a magnitude do que sucedeu, os estragos com os quais será preciso conviver. E essa é mais uma das desumanidades da catástrofe climática no Rio Grande do Sul, pois ocorreu algo diferente — tão brutal, concreta e objetiva foi a tragédia que o trauma varreu o Estado imediatamente, na mesma velocidade das águas que se ergueram e avançaram. 
Assim que a chuva e a subida furiosa dos rios começaram a castigar a população da Serra, do Vale do Taquari e da Região Metropolitana, não houve mais brecha emocional para gastar energia e pensamento com qualquer outra coisa. Com cento e cinquenta mortos e cerca de dois milhões de pessoas afetadas, a vida segue entre os que tentam sobreviver e os que tentam ajudá-los a sobreviver. A impressionante rede de solidariedade, que logo se espalhou por outros estados e países, também consequência da ineficácia governamental em adotar ações preventivas, tornou-se também uma corrente mental — essencial, torturante e inevitável.  
A circulação ininterrupta de helicópteros e o som das sirenes de ambulâncias que transportavam pessoas resgatadas, seguida por uma noite de sono agitado e totalmente ocupada por sonhos em que o cara se vê separando donativos para as pessoas atingidas, formam um cenário no qual o espaço mental está fechado para quaisquer outros acontecimentos. A tragédia tomou conta de todos nós, em todos os aspectos. Peça um desenho para uma criança gaúcha hoje e ela vai te presentear com um barco, um guarda-chuva, uma cidade no fundo do mar. 
Nesses dias que o tempo já não é capaz de compreender, quando por acaso nos deparamos com um jogo do Campeonato Brasileiro disputado a milhares de quilômetros do território gaúcho, esses milhares de quilômetros são reais, mas também simbólicos e metafóricos. Porque o futebol e qualquer outro esporte ou evento social hoje nos é alienígena. Clubes formadores de atletas olímpicos se transformaram em abrigos. E os próprios atletas olímpicos se embrenharam em regiões alagadas buscando gente que se prendia nos telhados.
Há cerca de dez dias não se fala de futebol no Rio Grande do Sul. Há cerca de dez dias não existe sequer rivalidade Gre-Nal, pois os clubes, assim como todos os outros nas regiões atingidas, estão envolvidos em ações que remediem a tragédia. Com convicção e reverência ao chão de onde brotaram, devolvem o empenho e a fé que as suas comunidades historicamente investem neles. A lógica pode parecer incompreensível para quem não está aqui — a verdade é que o Campeonato Brasileiro se tornou um estorvo para os gaúchos no momento de enfrentar a maior provação de sua história. Enquanto se discute “se” e “quando” o futebol será paralisado, jogadores de Inter e Grêmio estão resgatando pessoas com água até o pescoço. E ninguém vai sair do Rio Grande do Sul. Porque nenhum gaúcho quer sair do Rio Grande do Sul neste momento.
O futebol hoje é o que nos chega por algum contato casual, involuntário e indesejado, pois passamos os dias digerindo histórias aterradoras e imagens que serão cicatrizes. Nos momentos mais reflexivos, buscamos redesenhar mentalmente bairros e cidades que praticamente não existem mais. Nunca mais veremos o Rio Grande do Sul de dias atrás. Os rios voltaram a subir, portanto sobretudo estamos preocupados com os que voltaram pra casa e com aqueles que talvez não consigam sair. Estamos despedaçados, mas tentamos deixar para pensar nisso só depois.
Quem puder, ajude o RS.
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