Entre a tática e a excelência técnica, Real Madrid e City fizeram um duelo de gols improváveis

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Um dos aspectos mais fascinantes do 3 a 3 entre Real Madrid e Manchester City, daqueles jogos que serão lembrados e debatidos à exaustão, é levar ao limite um debate para o qual o futebol jamais apontou uma resposta definitiva. Até onde vai a influência dos treinadores, de suas decisões táticas tomadas antes do jogo ou de suas manobras estratégicas à beira do campo? Até que ponto as individualidades são capazes de tomar para si o protagonismo e colocar por terra boa parte do que foi planejado?
Pois o encontro entre Ancelotti e Guardiola foi profundamente condicionado pelas decisões dos dois treinadores, mas ainda assim o placar tão elevado só ocorreu por doses imensas de talento individual – e de alguns erros. Há algum tempo, fomos apresentados ao Xg, o chamado gol esperado. A métrica avalia a probabilidade de gol de cada finalização e, ao final do jogo, permite dizer quantos gols um time “deveria ter marcado” a partir da qualidade das chances que criou. E após o 3 a 3 de terça-feira, serviços estatísticos que incluem o Xg em sua coleta de dados indicavam o seguinte “placar” na qualidade de oportunidades: Real Madrid 0,65 x 0,80 Manchester City.
De fato, os gols incluíram a barreira mal formada e o erro de Lunin na abertura do placar, um arremate de Camavinga desviado pela defesa e, mais tarde, chutes de enorme nível de dificuldade de Foden, Gvardiol e Valverde. Estes últimos, testemunhos sobre a excelência técnica que confrontos desta natureza reúnem no futebol atual, com sua elevada concentração de riquezas.
Mas, como pano de fundo do jogo, havia um duelo tático que não era possível ignorar. E que esteve presente até em alguns destes gols que desafiaram a lógica das probabilidades.
Uma das chaves da partida era uma ausência: Walker, que há um ano fora exemplar ao conter as corridas de Vinícius Júnior. Ao também perder Ake, o City ficara não apenas sem um, mas sem dois de seus mais ágeis defensores, capazes de enfrentar Vinicius e Rodrygo em campo aberto, vital para um time que, pela lógica, teria mais posse de bola no campo ofensivo.
Ancelotti preparou a primeira surpresa do jogo, com Vinícius partindo do centro do ataque e Rodrygo iniciando aberto pela esquerda. O ex-atacante do Flamengo buscava uma posição entre Akanji, o lateral-direito, e Stones, o zagueiro pela direita.
As posições de Vinícius Júnior e de Rodrygo no jogo contra o City
Reprodução/Wyscout
Dali, ou buscaria corridas em profundidade ou tentaria atrair Stones para longe da linha defensiva, gerando um buraco. Para tanto, a orientação do Real Madrid era buscar seus atacantes em poucos passes, para gerar duelos de velocidade entre os brasileiros e os defensores. Assim acontece o segundo gol do Real Madrid. Vinícius, que teve atuação brilhante no papel de responsável pelo último passe, atrai Stones e cria um espaço na defesa do City.
Vinícius atrai Stones e cria o segundo gol do Real Madrid
Reprodução/Wyscout
Instantes depois, usa este mesmo espaço para dar o passe a Rodrygo.
O passe de Vinícius encontra Rodrygo
Reprodução/Wyscout
Mas o papel de Vinícius não se limitava a ser uma ameaça em velocidade ou servindo companheiros – também seria dele o passe para Valverde fazer o 3 a 3 no segundo tempo. O brasileiro dividia com Bellingham a tarefa de vigiar Rodri, tornar desconfortável o trabalho de um jogador central no sistema de jogo do City. Rodri costuma centralizar as jogadas, receber dos zagueiros e ditar o rumo do jogo. Sua atuação inferior à média em Madrid não foi por acaso. A imagem abaixo mostra Vinícius fazendo sombra ao volante do City.
Vinícius tenta incomodar Rodri
Reprodução/Wyscout
Com Rodri vigiado e os contragolpes do Real Madrid criando ameaças, a reação do Manchester City foi ruim: tornou-se um time que conservava a bola sem um propósito, a não ser evitar ser atacado. Havia poucos movimentos de infiltração, de passes mais ousados. Como se a ideia fosse, primeiro, estancar a sangria.
Na imagem, a configuração ofensiva do time de Guardiola no primeiro tempo. Stones saída da zaga e se alinhava a Rodri, com Bernardo Silva aberto na direita. Pelo meio, Foden e Kovacic buscavam os espaços entre as linhas de meio-campo e defesa do Real Madrid. No entanto, lidavam com uma soberba leitura de Kroos para bloquear Foden e uma marcação muito bem encaixada. Cabia a Valverde vigiar Kovacic.
A marcação do Real Madrid no primeiro tempo
Reprodução/Wyscout
No intervalo, Guardiola faz uma intervenção e Stones passa a ter cada vez mais presença perto da área adversária. Na direita, Bernardo Silva e Foden alternam papéis: um deles aberto, outro pelo centro. O City passa a ter sempre dois homens abertos – Grealish na esquerda, Foden ou Bernardo na direita -, e três meias por trás de Haaland: Kovacic, Stones e Foden ou Bernardo.
E assim voltamos ao debate sobre os limites das intervenções táticas e o impacto das individualidades. Porque foi esta mexida que propiciou os primeiros espaços na frente da área do Real Madrid. Justamente de onde Foden e Gvardiol dispararam chutes fatais. No entanto, somente a alta qualidade dos arremates permitiu que a nova configuração tática resultasse em gols.
A imagem abaixo mostra a construção do segundo gol do City. Stones está mais adiantado e Bernardo Silva recebe aberto, o que leva Kroos a fazer uma espécie de cobertura a Mendy. Com isso, Camavinga precisa dividir atenções entre Foden e Stones, enquanto Valverde, fora da imagem, está ocupado com Kovacic.
Stones mais avançado no lance do segundo gol do City: espaço para Foden
Reprodução/Wyscout
Quando a bola chega a Stones, Camavinga é atraído e Foden tem um raríssimo espaço na entrada da área do Real Madrid para disparar seu chute.
Stones atrai Camavinga e libera Foden para o chute
Reprodução/Wyscout
Jogos de volta costumam ser continuações da partida de ida. Até quarta-feira, Ancelotti e Guardiola vão dormir, sonhar e acordar rodeados pelas ações e reações dos primeiros 90 minutos do confronto. O italiano tentará encontrar meios para cortar o circuito de passes do City na segunda etapa e ativar com mais frequência seus atacantes. O catalão voltará a viver o desafio do controle: ocupar o campo rival, ter a bola, criar chances e, ao mesmo tempo, limitar os contragolpes. A primeira tarefa será recuperar seus lesionados, entender se Walker estará disponível e se Kevin de Bruyne, que passou mal pouco antes da partida de ida, poderá jogar. Afinal, em confrontos deste nível, é impossível dissociar planos táticos e a qualidade dos intérpretes. Na partida de ida, eles transformaram lances improváveis em gols.

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