Guerra da carne, picuinha e xenofobia: num domingo, o futebol brasileiro em três atos

6 min read
Quando a internet, em sua incomparável agilidade, começou a produzir paródias que remetiam a saga do jovem alvinegro Yarlen, sucessivamente arrastado para dentro e para fora do campo do Maracanã, à famosa “guerra da carne” no filme Tropa de Elite, foi natural que a primeira reação fosse achar graça. Passadas algumas horas, é preciso reconhecer que o futebol brasileiro produziu mais uma cena degradante. Apenas mais uma passagem desonrosa de um fim de semana que teve, ainda, picuinhas entre rivais, xenofobia e barraco na porta de um vestiário.
Já que o paralelo foi traçado, é preciso separar a importância das coisas. No filme, o Capitão Fábio é repreendido por um Coronel por ter fracassar na estratégia usada por cada batalhão da polícia para maquiar as estatísticas de criminalidade em sua área de atuação: jogar defuntos de uma região para outra. Dias depois, os corpos reaparecem no mesmo local, porque outro batalhão, claro, usa o mesmo expediente. Esta é parte de nossa tragédia diária, de uma sociedade violenta, que produz homicídios em escala industrial, e de uma autoridade policial corrupta, incapaz e igualmente violenta.
O que aconteceu no Maracanã é a sinalização de outro tipo de falência, cuja importância está reduzida ao ambiente do jogo – embora este também dialogue com a sociedade. É a falência de valores de esportividade, o retrato de uma lógica em que jovens são treinados para tirar vantagem de qualquer aspecto do jogo e a qualquer custo. Yarlen, atingido por John Kennedy, acabou caindo fora dos limites do campo, bem perto da linha de fundo. Como o Botafogo vencia o jogo, a primeira reação do lateral Hugo foi puxar o jovem pelo braço e arrastá-lo para dentro de campo. Pareceu pouquíssimo preocupado se Yarlen, que tinha as mãos no rosto, estava machucado. A questão era fazer do companheiro, que acabara de ser atingido, um instrumento de antijogo.
Tampouco se preocupou Felipe Alves, goleiro do Fluminense. Ágil, correu junto com Martinelli, volante tricolor, para arrastar Yarlen para fora do campo. O único objetivo era liberar o campo para a bola rolar. Desta vez, talvez por questão de praticidade, o fizeram segurando o alvinegro pelas pernas. Yarlen apenas tentava entender o que se passava e esboçou levantar. Foi quando tomou um tranco de Lucas Halter, que já fora até substituído. A rigor, um puxão pelo braço e um empurrão bastaram para colocá-lo novamente num local que paralisasse o jogo. Nem seria preciso.
Felipe Alves arrasta Yarlen no clássico
Reprodução GOAT
A esta altura, num desfecho talvez previsível, um exército de titulares, reservas e integrantes de comissões técnicas corria para o local, todos ansiosos em tomar parte na contenda. Difícil encontrar exemplos em que a lei da ação e reação se manifesta mais rapidamente do que a fúria dos bancos de reservas no futebol brasileiro diante de qualquer indício de rixa. A partir daí, foram empurrões, safanões e xingamentos. Quem queria ver futebol, precisou esperar.
A saga de Yarlen teve certo toque do inusitado, porque é um tanto excêntrico o revezamento de marmanjos arrastando um jogador de futebol para um lado e para o outro. Provavelmente, cada um deles se sentiu mais malandro do que o anterior após cumprirem suas empreitadas. A briga que sucedeu o tira e põe de Yarlen no campo foi só a cena infame que faltava para que ninguém duvidasse que ali estava sendo jogado um clássico no futebol brasileiro.
Porque o ambiente em que se joga no Brasil é dominado por códigos que não conseguimos reformar: a malandragem, a truculência, a tentativa de desestabilizar árbitros da forma menos respeitosa possível… Um vale tudo natural num país que exalta os vencedores sem julgar os meios. Logo depois da guerra da carne do Maracanã, o futebol brasileiro veria outros exemplos ruins no MorumBIS.
Toda semana nos perguntamos porque os clubes brasileiros não conseguem sentar à mesa para que nosso jogo evolua em questões estruturais, do calendário aos gramados. E para que uma liga administre o Campeonato Brasileiro. Nos pequenos episódios, é possível entender. Nossos clubes são muito mais ágeis na arte da picuinha do que do entendimento, da retaliação do que do bom exemplo.
Há alguns meses, o São Paulo entendeu não ter recebido uma instalação adequada para que seu treinador desse entrevista coletiva no estádio do Palmeiras. Na lógica do futebol brasileiro, um clube não se mostra diferente do outro por fazer diferente, ou por fazer melhor. Respiramos um ar em que todos são inimigos. Há um esforço para provar à arquibancada, à opinião pública, à política interna dos clubes, que as cores e a honra está sendo defendida. Nesta visão torta, defesa da honra é desferir no rival os mesmos golpes, ou ainda piores. O São Paulo negou ao Palmeiras uma sala de coletivas e o alviverde deixou o jogo sem falar.
Jogadores do São Paulo vão para cima da arbitragem no Morumbis
Reprodução
O importante aqui não é a entrevista em si, é o sinal da completa ausência da lógica do entendimento. O futebol brasileiro em seus bastidores estava desenhado ali. Chuta-se para longe a valorização do produto, de um clássico dessa importância. Limita-se a repercussão do jogo, a comunicação com o público, a exposição dos patrocinadores. Tudo em nome da lógica mesquinha da demarcação do território, da tentativa de provar que a descortesia de três meses atrás não ficaria sem resposta.
Como se não bastasse, jogadores e dirigentes, amadores e profissionais, ainda foram flagrados protagonizando outras baixarias nos corredores do estádio, onde tentavam intimidar a arbitragem. Até que o domingo do futebol brasileiro, que começou com guerra da carne e passou pela guerra dos auditórios, terminou com xenofobia. “Português de m…”, disse o diretor de futebol do São Paulo, em referência a Abel Ferreira. Uma ofensa para encerrar a rodada.
Em três atos, uma pequena aula de futebol brasileiro.

You May Also Like

More From Author

+ There are no comments

Add yours