No debate sobre jogadores poupados, técnicos não podem virar escudos para dirigentes incapazes

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Os resultados recentes na Libertadores tornaram a comissão técnica do Flamengo o alvo da vez. Mas a discussão já passou por Grêmio, Palmeiras ou qualquer outro clube que tenha poupado jogadores em uma partida relevante. Ocorre que, a cada vez que um treinador é posto na berlinda por mexer na escalação e administrar o fôlego de seus jogadores, os verdadeiros responsáveis pelo caótico calendário brasileiro têm mais uma tranquila noite de sono.
É curioso, para não dizer anacrônico, que em pleno 2024 ainda se discuta os limites da interferência dos dados científicos na escolha dos jogadores que vão a campo num país que pode impor até 80 jogos a um clube. Não é mais possível analisar escalações com as mesmas premissas de 20 anos atrás, pelas transformações do jogo e, principalmente, pelo caráter disfuncional do calendário brasileiro. Claro que o país não irá virar a página e deixar de ter um 11 ideal no imaginário das pessoas. Mas é impossível atravessar a temporada sem variar três ou quatro nomes a cada jogo. O desafio é fazê-lo com bom planejamento e capacidade de manter o nível de desempenho.
Tite, treinador do Flamengo, durante partida contra o Palestino, na Libertadores
André Durão
O caso do Flamengo é simbólico. Primeiro, porque retrata a deformação na agenda de competições no Brasil: joga-se os Estaduais com espaço generoso entre partidas e até respeito à Data Fifa, antes da maratona que cerca as competições realmente importantes do país. Há um número que é chave nesta história. Entre o jogo com o Sampaio Correa, logo após a pré-temporada nos Estados Unidos, e o empate com o Fluminense, na partida de volta das semifinais do Carioca, o Flamengo teve uma média de 4,5 dias de espaço entre partidas. Algo próximo do racional, num momento em que se jogava a menos importante competição do ano.
Um quadro que se altera radicalmente quando começam os torneios, de fato, importantes. Entre os 3 a 0 no Nova Iguaçu, na final do Estadual, e a derrota para o Bolívar, a média de espaço entre as partidas caiu para 3,12 dias. Ou seja, o calendário brasileiro respeita mais os Estaduais do que o Brasileiro e a Libertadores. E, a partir de agora, quem avançar em todos os torneios enfrentará jogos a cada três dias até dezembro, em base quase ininterruptas. Não há time titular que resista.
Mas o caso rubro-negro também ilustra o drama das escolhas que técnicos são obrigados a fazer. Uma delas, especialmente controversa, e que pode ter consequências: mesmo com um 3 a 0 sobre o modesto Nova Iguaçu no jogo de ida, os titulares atuaram na segunda partida da final do Estadual, dias após quatro deles terem sido poupados no tropeço diante do Millonarios, na Colômbia, pela Libertadores.
A escolha reforçou a sensação de que o clube deu tratamento mais nobre ao Estadual do que às competições mais relevantes. Não é algo que se sustente em números. A rigor, quem trata com mais nobreza os torneios locais é o próprio calendário da CBF.
Após voltar dos EUA, o Flamengo enfrentou o Sampaio Correa pelo Carioca. Já naquele jogo poupou Fabrício Bruno, Varela, Pedro e Éverton Cebolinha. Todos voltaram quatro dias depois, contra o Vasco, e a base foi mantida três dias depois, diante do Botafogo. No entanto, obrigado a atuar após novo prazo de apenas três dias, Tite tirou oito titulares do jogo com o Volta Redonda. A partir daí, teve sempre entre cinco e sete dias de espaço entre partidas até o segundo jogo da semifinal, contra o Fluminense. Neste período, poupou um titular contra o Boavista e, mais tarde, tirou outros três do jogo com o Madureira. Em seguida, como a única Data Fifa realmente preservada no Brasil acontece durante os Estaduais, o time teve 14 dias sem jogos até iniciar as finais do Carioca. Ou seja, a cada vez que o calendário apertou durante o Estadual, o Flamengo preservou atletas.
Até que surgiu a grande controvérsia. Após duas semanas “livres”, o Flamengo iniciou com força máxima a final com o Nova Iguaçu, quando venceu por confortáveis 3 a 0. Ocorre que jogadores importantes haviam passado tal período com suas seleções. A comissão técnica decidiu preservar Ayrton Lucas, Léo Pereira, De La Cruz e Luiz Araujo do jogo com o Millonarios, três dias após bater o Nova Iguaçu. O empate na Colômbia coloca o Flamengo com pouca margem de erro nas rodadas finais.
Neste cenário, foi surpreendente não preservar ninguém no segundo jogo com o Nova Iguaçu, em que o Flamengo defenderia vantagem confortável. O clube decidiu que o Estadual era uma prioridade e a comissão técnica, mesmo com o placar folgado, quis evitar sustos. A ideia era poupar jogadores com substituições. Mas a primeira troca só foi ocorrer com 70 minutos de partida. Um excesso de zelo diante da folgada vitória na partida de ida.
Encerrado o Estadual, nem o Flamengo, nem qualquer outro clube de elite do Brasil, teria mais de quatro dias entre um jogo e outro. E, naturalmente, as rotações no time se intensificaram. Fabrício Bruno deu lugar a Léo Ortiz contra o Palestino, ninguém foi preservado contra o Atlético-GO na estreia do Brasileiro, mas Arrascaeta e Luiz Araujo não iniciaram o jogo com o São Paulo. Em seguida, De La Cruz e Pedro foram preservados num jogo nobre contra o Palmeiras, antes de sete titulares ficarem fora da escalação inicial na altitude de La Paz – esta uma circunstância peculiar.
É possível discordar da escolha de um jogo ou outro para que jogadores mais influentes descansem. O debate é justo. O equívoco é ignorar que eles precisam descansar. Nem sempre o melhor desempenho se dará através de pernas cansadas, por mais técnicas que sejam. Em pleno 2024, questionar a ciência e a escolha por alternar escalações é mais do que brigar com a obviedade. É fazer das comissões técnicas do país um escudo para dirigentes incapazes de solucionar o problema crucial do futebol brasileiro: o calendário.

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