O Real Madrid é um desafio à compreensão

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Para quem se dedica a analisar futebol, é difícil encontrar um tema tão desafiador quanto o Real Madrid, capaz de nos impor um exercício de humildade. Enquanto tentamos explicar tudo, racionalizar cada acontecimento em um campo de futebol, este time teima em nos lembrar que o futebol, tantas vezes, não é feito para ser compreendido, explicado racionalmente. Há jogos em que as coisas simplesmente acontecem, sem que dependam de razões táticas ou técnicas tão claras. Ocorre que, ainda que aceitemos tudo isso, segue difícil compreender por que, quase sempre, as coisas acontecem a favor do Real Madrid.
Há dois anos, quando sobreviveu a um mata-mata com o PSG, falou-se do erro de Donnarumma num confronto em que os espanhóis não se impunham aos franceses. Semanas depois, quando Rodrygo encontrou, nos acréscimos, dois gols que evitaram a eliminação para um Manchester City claramente superior, a tese foi uma suposta inexperiência dos ingleses para lidar com momentos decisivos na Champions. Na final, quando o Liverpool foi claramente superior, a explicação foi Courtois e sua atuação sobrenatural.
Avançamos dois anos no tempo. O City já era campeão europeu, novamente era melhor time no confronto, mas perdeu oportunidades e viu o Real Madrid avançar nos pênaltis. Nas semifinais, o Bayern de Munique parecia ter o Santiago Bernabéu sob controle, até Neuer contrariar qualquer prognóstico e cometer a falha fatal. Neste sábado, em Wembley, um Borussia Dortmund que oferecia vastos argumentos para ser tratado como azarão desde as quartas de final desta Champions, foi o melhor time. Até marcar mal uma cobrança de escanteio, errar um passe numa saída de bola e passar do sonho com a taça à realidade de um 2 a 0 para o Real Madrid.
Nacho levanta taça da Champions League após vitória do Real Madrid contra o Borussia Dortmund
Neil Hall/EFE
Haverá quem argumente, e com boa dose de razão, que este é um clube cuja história se escreve a partir dos talentos, das estrelas, da permanente reunião de parte importante dos principais jogadores de cada era do futebol. E, claro, jogadores assim se mostram nos grandes jogos. Ocorre que tampouco é possível explicar através deles as recentes vitórias. Porque é justo esperar que um clube agora 15 vezes campeão do maior torneio do planeta, com tantos talentos juntos, faça tamanho poder se traduzir em imposição. E os jogos do Real Madrid não contam esta história. É permanente o flerte com o revés, é habitual a sensação de um time superado, é recorrente que esta história termina em uma vitória ao mesmo tempo esperada e surpreendente. O Real Madrid, por vezes, é um imenso paradoxo: o jogo oferece todos os sinais de que ele vai perder, mas ainda assim esperamos que ele ganhe. E ele ganha.
Neste sentido, o Real Madrid de Ancelotti é ainda mais simbólico deste desafio a todas as nossas zonas de conforto, a nossas certezas. O futebol moderno nos habituou a ver triunfarem times com modelos de jogo muito sistematizados. A hegemonia do chamado futebol posicional nos leva a procurar padrões em tudo, zonas que devem ser ocupadas por cada jogador, times que parecem ensaiados à exaustão com esquemas identificáveis.
Pois o Real Madrid é o retrato da fluidez absoluta, com uma liberdade de movimentos das estrelas do time num nível raro de se ver atualmente. Claro que há ordem, orientação, norte. Mas há partidas em que este time é capaz de ocupar espaços predeterminados, outras em que a bola é a referência para que os talentos se agrupem. Há jogos em que é capaz de ser submetido, defender-se perto de seu gol e contragolpear; e outros em que precisa controlar mais a bola. O ponto de partida, para Ancelotti, é deixar confortáveis as suas estrelas.
Quanto a Ancelotti, este cidadão do futebol, não há nada que possa lhe tirar um lugar na história do jogo. Mas é igualmente intrigante que amplie seu recorde de cinco títulos da Champions em mais uma temporada de contrastes. Ao adiantar Bellingham no campo, por vezes montando um losango que ampliava o espaço de movimentação de Vinícius Júnior e Rodrygo na frente, o italiano foi brilhante ao acomodar seus talentos. Ao mesmo tempo, a sensação de que faltava algo de solidez, a repetida impressão de que os rivais controlavam jogos, não combina com um time que vence com tanta frequência. Porque, em geral, o futebol permite vencer um jogo ou dois sem ser dominante. Nunca, vencer tantos campeonatos, ainda mais quando estes são os mais importantes do mundo.
Neste sábado, em Wembley, o Real Madrid foi tudo o que tem sido em suas últimas conquistas. No plano tático, voltou a se ver superado. O primeiro tempo tinha um Dortmund ordenado para abafar Kroos ao escalar Sabitzer ao lado de Brandt numa dupla de meias. Assim, cortava circuitos de passes, recuperava bolas e atacava as costas da defesa, especialmente pelo setor de Carvajal. Foram do Dortmund as melhores chances. A ponto de, na segunda etapa, Ancelotti ceder um pouco mais da posse aos alemães para evitar ser punido com contra-ataques.
Mas o jogo se decidiria, outra vez, em erros evitáveis de um rival que era melhor. Uma marcação mal feita a Carvajal no escanteio do primeiro gol, um passe errado do lateral Maatsen no 2 a 0. Neste último lance, Bellingham acionou Vinícius Júnior, dono de um capítulo especial. Enquanto o Real Madrid era superado, cabia a ele ser a válvula de escape quase solitária. Está pavimentado o caminho para o futebol brasileiro ter, de novo, o melhor jogador do mundo. Vinícius jogou a Champions como um Bola de Ouro.
Foi um sábado de sentimentos familiares. O estelar Real Madrid, uma reunião admirável de alguns dos melhores jogadores do mundo, voltou a nos fazer acreditar que estava nas cordas. Nada que já não tenhamos visto tantas vezes quanto a cena final da temporada europeia de clubes: o Real Madrid erguendo a taça da Champions.

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