Silvio Luiz, Antero, Apolinho e as memórias que levamos adiante

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Nos despedimos de pilares da profissão que compartilhavam um dom: construir memórias afetivas nos torcedores. Em meio à tragédia climática no Rio Grande do Sul, esses dias viralizou um vídeo no qual o repórter da CNN entrevistava um senhor resgatado em Canoas. Pessoa com deficiência, cadeirante que não tem as duas pernas, seu Solomar foi resgatado em circunstâncias dramáticas enquanto se segurava nas grades de casa. No avançar da conversa, ele comentou sobre a única coisa que lamentava ter deixado para trás: a sua bandeira do Inter.
Um dos legados terríveis do levantar das águas que deixou tantas vítimas e obrigou milhares de pessoas a deixarem suas casas às pressas é a perda da memória concreta: fotos, objetos e lembranças foram arruinados ou abandonados, pois assim era preciso, e com eles se perde parte fundamental das histórias pessoais e familiares. As memórias e afetos vinculados a cada objeto estão órfãs, perderam suas referências, e a reconstrução da vida passa essencialmente por suportar, contornar e transformar essa ausência, que no fim das contas simboliza outras ausências, maiores.
Os últimos dias desabaram de forma pesada sobre o jornalismo esportivo: no espaço de poucas horas, faleceram Apolinho, Antero Greco e Silvio Luiz, todos eles pilares da profissão, cada um com suas qualidades e peculiaridades. Todos eles, no entanto, com um dom compartilhado: a capacidade de construir memórias afetivas nos torcedores. Da geração rubro-negra que deve parte de seu furor flamenguista a Apolinho, presença assídua desde a infância, aos que dormiam mais serenos depois de ver Antero Greco desfilar graciosidade e competência a cada encerramento de um dia muitas vezes hostil.
As memórias se perdem, se renovam e se entrelaçam ao mesmo tempo. Silvio Luiz bem poderia ser considerado parte da família na véspera do almoço de domingo na casa da vó na virada dos anos 1980 para os anos 1990, fazendo parte da conversa com aquele frenético diálogo entre seus bordões e as receitas de porpetta e lições sobre a unificação italiana de Silvio Lancellotti nas transmissões do campeonato italiano pela Bandeirantes. São afetos imateriais costurados na madeira da casa no bairro Sarandi, violentamente atingido pelas enchentes. Ontem, Silvio Luiz morreu. Há duas semanas, a casa do Sarandi foi coberta pelas águas. Afetos materializados se perderam, a TV há tempos já não era a mesma, Dona Orlandina se foi há alguns anos, no auge dos 94 anos e dando a impressão que viveria mais que todos nós.
Perder as referências e mesmo assim seguir lembrando é um fardo pesado demais para a memória individual carregar, mas esta é uma missão da qual não se pode (nem se quer) fugir. Porque reconstruir ou seguir em frente é uma empreitada que se toca adiante prestando constante tributo ao passado, tentando levar junto, a qualquer custo, tudo que ficou para trás.
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Arte

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