Entenda o que diz a PEC das praias sobre temas como privatizar a beira-mar e legalizar o complexo da Maré

O Senado iniciou nesta semana a discussão de uma proposta que autoriza a venda de terrenos próximos ao mar (de marinha) a empresas e pessoas que já estejam ocupando a área, além da transferência para estados e municípios. Pelo projeto, os lotes deixariam de ser compartilhados, entre o governo e quem os ocupa, e teriam apenas um dono, como um hotel ou resort.
A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa realizou na segunda (27) debate sobre o assunto. Após a repercussão negativa, líderes partidários; o presidente do colegiado, Davi Alcolumbre (União-AP); e até o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG); afirmaram que não há previsão para o projeto ser votado e que, por enquanto, só cabe a discussão. A matéria foi aprovada em 2022 pelos deputados, mas precisa do aval dos senadores para virar lei.
A atriz Luana Piovani e o jogador Neymar trocaram farpas sobre o tema, que também divide políticos e especialistas. O jogador de futebol anunciou parceria com uma construtora para um condomínio na beira do mar.
A proposta de emenda à Constituição (PEC) retira do governo federal a propriedade exclusiva sobre os terrenos de marinha — localizados na faixa de terra de 33 metros ao longo da costa brasileira.
O projeto permite a venda dos terrenos para pessoas que já têm casas ou pousadas e pagam um imposto para uso dos imóveis. Conforme o texto, só permaneceriam com o governo áreas ainda não ocupadas e locais onde são prestados serviços públicos, portos e aeroportos, por exemplo.
Opiniões contrárias
Quem é contra, a exemplo do Painel Mar, plataforma que reúne sociedade civil e entidades governamentais, argumenta não fazer sentido vender lotes que podem “deixar de existir no futuro” por causa do aumento do nível do mar. Segundo o grupo de estudos, a proteção dos mangues e restingas ajuda a enfrentar as mudanças climáticas pois essas áreas funcionam como uma barreira natural, que ameniza a gravidade de situações como a vivida no Rio Grande do Sul.
Piorar a “degradação ambiental” nas regiões à beira mar, de acordo com a plataforma, vai fragilizar ainda mais comunidades tradicionais que dependem do ecossistema marinho para sobreviver- populações caiçaras, quilombolas, ribeirinhas e povos indígenas.
A diretora de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Ana Paula Prates, explica que o projeto abre brecha para “privatizar o acesso à praia, e não a praia em si”. Ou seja, a proposta não prevê a “privatização direta” das praias, mas possibilita que uma empresa cerque o terreno e impeça a passagem de banhistas na faixa de areia, como já é visto hoje em alguns resorts.
“São áreas de restinga, mangues, dunas, pedaços de praia mais para cima, entradas de rios. São locais que vivem sob a influência da maré e têm ligação direta com o aumento do nível do mar. Esses terrenos são a salvaguarda para a adaptação da mudança do clima”, disse Prates ao g1.
O relator da proposta no Senado, Flávio Bolsonaro (PL-RJ), diz que o texto vai permitir a transferência de 8,3 mil casas para moradores do Complexo da Maré- bairro na Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro- e para quilombolas da Restinga de Marambaia- ilha também localizada no Estado do Rio.
O senador pontua que haverá um aumento da arrecadação de impostos pelo governo e da geração de empregos nas regiões. “Olhem só o mundo de arrecadação que tem para a União. Nas utilizações dos imóveis, tem aqui os valores discriminados. Pessoa física: R$42 bilhões; pessoa jurídica: R$67 bilhões; setor hoteleiro: R$1,7 bilhão; ramo imobiliário: quase R$24 bilhões. Imaginem, se houvesse a cessão onerosa dessas propriedades, o quanto que a União não arrecadaria com isso, muito mais”, afirmou o parlamentar na audiência pública.
Alceu Moreira (MDB-RS), que já foi presidente da Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), relatou o texto na Câmara, onde já foi aprovado.
Segundo ele, o projeto vai fomentar investimento em praias que se tornaram “verdadeiros cortiços no litoral do Brasil” e criar empregos para “milhares de pessoas”.
“Não estamos oportunizando nenhum negócio imobiliário a quem quer que seja, não estamos autorizando a privatização de praia alguma. Absolutamente nada! Agora, pegue aí uma ilha como a de Florianópolis, pegue as áreas portuárias que nós temos abandonadas, verdadeiros cortiços no litoral do Brasil, sem nenhuma conservação, sem nada, pontos absolutamente apodrecidos, destruídos, que poderiam ser áreas nobres das cidades, agregar ao patrimônio das cidades, mas que estão fora, porque são áreas de marinha. A SPU [Secretaria do Patrimônio da União] não tem dinheiro para cuidar, não faz absolutamente nada, e elas ficam como verdadeiras cicatrizes nas nossas cidades”, afirmou o parlamentar durante o debate no Senado.
Como é a regra hoje?
Os terrenos de marinha, que correspondem a 48 mil km em linha reta, pertencem ao governo federal; representam 70% de todas as áreas em nome da União. São uma faixa de terra de 33 metros de largura contados a partir da linha imaginária da média das marés- delimitada ainda no Brasil Colônia, em 1831. Rios e lagos que sofrem influência das marés são também considerados. Há 279 municípios litorâneos no país, sendo 11 capitais.
A União, que é a dona da área, permite que pessoas e empresas usem, possuam e até transmitam as terras aos seus herdeiros. Por conta disso, empreendimentos nessas regiões são taxados com um imposto para uso dos imóveis.
Tributos cobrados:
– taxa de foro: cobrança anual de 0,6% do valor do terreno. Arrecadação de R$ 334,3 milhões por ano;
– taxa de ocupação: pagamento anual de 2% do valor do terreno, inscrição de ocupação do lote. Arrecadação de R$ 823,7 milhões por ano;
– laudêmio: taxa de 5% sobre o valor do imóvel quando comercializado.
Ministério da Gestão e Inovação (MGI) informou que há 564 mil imóveis registrados em terreno de marinha. O governo arrecadou, em 2023, R$ 1,1 bilhão com as taxas de foro e de ocupação. A pasta estima que o valor poderia ser cinco vezes maior, com um total de quase 3 milhões de construções nas áreas próximas ao mar, mas que não foram oficializadas.
20% dos valores apurados são repassados para os municípios.
A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) é responsável por gerir os terrenos. O órgão promove a regularização fundiária urbana de assentamentos irregulares.
“No ano de 2022 foram repassados para municípios cerca de 120 milhões de reais. Embora a PEC em análise determine que as áreas desocupadas permanecem na gestão da União, a possibilidade de municípios poderem acessar mais áreas a partir da expansão de perímetros urbanos, sem dúvida irá reduzir áreas disponíveis ao desenvolvimento nacional. Isso demandará futuras desapropriações trazendo altos custos indenizatórios para a União”, explica o MGI.
O que o projeto diz?
– reserva ao governo federal e a municípios áreas ainda não ocupadas;
– reserva à União locais onde estão concessionárias e permissionárias de serviços públicos, como portos e aeroportos; e unidades ambientais;
– reserva a estados e municípios áreas onde sejam prestados serviços públicos locais;
– permite a venda dos terrenos para pessoas ou empresas que ocupam os terrenos e estão registradas no sistema do governo, ou seja, pagam os impostos obrigatórios;
– autoriza a compra dos terrenos também para ocupantes que não estejam regularizados, cadastrados no sistema, desde que comprovem que usam os lotes há cinco anos.
Após a venda dos terrenos para particulares, não haverá mais gestão compartilhada com o governo. Isso quer dizer que pessoas e empresas serão os únicos donos.
O que dizem especialistas e órgãos do governo?
Painel Mar
Como a entidade vê a proposta:
– “ameaça às praias, rios, lagoas e mangues, dá aval para a indústria imobiliária degradar, além de expulsar comunidades tradicionais de seus territórios”;
– futuramente, com o avanço do mar, os terrenos precisarão ser desocupados, o que vai gerar custos para o governo;
– a proposta pode impulsionar a criação de praias privadas e uma eventual abertura de um mercado para a construção de hotéis, resorts e cassinos em beira de rio e mar;
– cita que estudos do Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima (PNA) mostram que mesmo que o mundo pare de emitir os gases do efeito estufa, os impactos causados pela absorção de calor pelo oceano, como o aumento do nível do mar, continuarão por décadas. Dados da Universidade de São Paulo (USP) revelam aumento do nível do mar de cerca de 4 milímetros por ano. “É imprescindível que as áreas costeiras comecem a ser recuperadas e restauradas (restingas, manguezais e apicuns) recuperando sua função ecológica não só de absorção de carbono mas como barreiras naturais à elevação do nível do mar”, explica a nota;
– cita estudo do Ministério do Meio Ambiente, de 2018, que mostra que há “avançado processo erosivo em 40% da costa brasileira”. Diz que a, partir da proposta, a erosão será intensificada, causando o chamado “estreitamento da costa” “até o colapso do turismo com a supressão das praias”;
– a entidade sugere que seria interessante fortalecer a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para um aumento da arrecadação a partir do imposto cobrado pela ocupação das áreas e uso desse dinheiro para lidar com mudanças climáticas.
O cientista Carlos Nobre, especializado em aquecimento global, afirma que “se não controlarmos o efeito estufa, até o final do século, o mar vai subir de 80 cm a 1 metro”. Para ele, ao invés da proposta, é necessário um plano, a longo prazo, para retirada das comunidades ribeirinhas dos terrenos de marinha, já que o aumento das marés e ressacas mais fortes são invevitáveis. “Completamente sem sentido tornar propriedade privada quando, no final desse século, essas áreas serão mar”, disse.
Suelly Araújo, do Observatório do Clima, identifica no projeto um “grande lobby” do setor turístico de resorts. Segundo ela, trabalho de pessoas que vendem produtos na praia, em barracas e quiosques, será ameaçado com o estabelecimento de áreas privativas.
O Ministério dos Povos Indígenas (MPI) sustenta que “a gestão tradicional promovida pelas comunidades indígenas, fundamentada em conhecimento socio-tecno-ecológico profundo, resulta em práticas de conservação sustentável que impedem a degradação ambiental, a extinção de espécies e contribuem com a desaceleração das mudanças climáticas”.
MMA e Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) também são contra a medida.
Exemplo prático
Segundo a plataforma Painel Mar, em Balneário Camboriú (SC), “a supressão das dunas e praias por calçadões e avenida beira-mar durante as últimas décadas acarretou severos impactos tais como a diminuição da área de lazer da praia central e o sombreamento da praia”.
“A privatização de lucros e a socialização de prejuízos acarretou custos milionários para o alargamento da praia, custeados por empresários locais, mas que a grande maioria dos municípios brasileiros não possuem condições financeiras sequer de realizar um projeto desta natureza. Outro exemplo é o que vem ocorrendo na cidade de Atafona, litoral norte do Estado do Rio de Janeiro, onde o mar avança em média 2,7 metros por ano, mas já chegou a aumentar até oito
metros em alguns anos, como entre 2008 e 2009, causando diversos prejuízos e transformando a cidade em uma cidade fantasma”, explica a entidade.

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